FLAGRADOS EM DELITO CONTRA A NOITE/MANIFESTO CURAU


O menino ouvia.

- O medo só veio para aqueles que tinham as suas velhas razões para ter medo, e esses passaram a ter medo então do Curau. Eles têm medo de tudo, dizia Jacinto. O menino ouvia.
Quando a ave veio, aquele medo andava pelas ruas com passos que nunca levarão a uma terra sagrada, menino, dizia Jacinto.
E o menino ouvia.

Os jardins e a noite, 1981/ Terceiro livro visível de Andara

Vítimas de uma sociedade violentamente gerada pelos mais evidentes padrões de colonização, nossas chances de mudá-la começam na visualização da face oculta de quem nos fez isso.
Este é um esforço que precisa voltar bem atrás, e que deverá se espalhar, interrogativamente, em várias direções, para obter êxito.
Historicamente, a História vista com um outro olho, não essa de a prioris infalíveis, mas uma de navegações frequentemente sem leme e em rumo incerto, historicamente, a falência do Ocidente culto instituído, aristotélico e cartesiano, pragmático enfim, tem sido uma crença estúpida, contagiosa e exportada para os quatro cantos magros do mundo, num dos quais nos incluímos, embora devamos estar solidariamente em todos eles: uma crença que afirma que só os dias despertos existem, sendo todo o resto fantasma, isto é: a parte dos sonhos.
Aí se instala o reduto central da opressão, desse Ocidente auto- suficiente e, em decorrência, rancoroso, reduto que as nossas confrontações libertárias com o colonialismo devem atacar cada vez mais.
As fábulas do Ocidente culto são, assim, quando existem, frequentemente documentos de um terror.
O terror de permitir que os sonhos humanos penetrem no real para fecundá-lo de desejos nos limites do impossível, seduzindo toda sensatez domada, estabelecida, libertando o real da racionalidade maníaca. Essa senhora respeitável e, no entanto, infame.

 (1) Mas nós, aqui, entre peixes, sonhos e homens, nesta Amazônia em transe permanente, sabemos, ou deveríamos saber, que é preciso tocar o coração de Aquiles do real, ali onde ele é sensível e impaciente espera de um acontecimento total que o transfigure.
Onde se oculta, e como se dissimula, o medo ocidental?
Sua recusa sistemática da dimensão imaginária humana?
Afinal, e claramente, um mecanismo de civilização em processo de autodefesa tão suicida como criminoso, como qualquer outro verificável em individualidades retorcidas pelo esgotamento de uma existência sem revitalizações permanentes?
Marx dizia que, na História, os acontecimentos se repetem como farsas. O Ocidente culto é a repetição de uma repetição, a farsa de uma farsa.
Esse medo, vulnerável a um olhar sem véus, revela-se: trata-se, quando observado sem reservas nem admiração inocente, de uma engrenagem que, atualmente, e cada vez mais, de repetição em repetição histórica, gira ao contrário: se antes permitiu ilusões reconfortantes, hoje, ela despedaça o próprio ocidental – e faz dele sua vítima mais imediata, não esqueçamos isso – carente como ser dado ao mundo social – apesar de uma civilização de bem-estar material – e como projeto de ser – nunca totalmente alienável – na destinação secreta que o põe, no ritual das ontologias indiferentes às deformações da História, e apesar das consolações religiosas do Ocidente, desabrigado num cemitério de ossadas morais, estéticas, políticas – estas, também um fêmur roído até a fronteira das cerimônias sociais já sem sentido.
O medo do Ocidente culto é o medo do Ocidente às revoluções. De qualquer espécie. Poéticas ou políticas, ou à aliança dessas duas formas de luta.
O medo do Ocidente às fábulas do imaginário rebelde é a mais evidente declaração de desprezo desse Ocidente pela realidade.
Porque, na verdade, esse Ocidente nega o real, sob o álibi de recusar o sonho em nome de uma realidade que, de fato, é vazia e inexistente, porque mero artifício engenhoso engendrador de uma forma de dominação que se quer estável e permanente, certeza e reafirmação da manutenção perpétua de um poder.
O medo ocidental culto é o medo dos imperialismos da Razão, e sua base econômica e totemicamente moral, às possibilidades históricas e estéticas da África, da Ásia, do Oriente Médio e da América Latina.
Também não temos o direito de esquecer que é com esse medo que as autoridades desse Ocidente culto submetem o indivíduo ocidental anônimo: latente aliado do Terceiro Mundo para uma insurreição em escala planetária.
Esse medo é o manifesto temor, de impulsões assassinas – os massacres do imperialismo estão em toda parte, inclusive na expansão de um novo imperialismo europeu de esquerda – de um organismo arcaico ante a emergência de novas vitalidades sobre o planeta.
O equívoco das lutas antiimperialistas circunscritas à confrontação política e econômica é, tem sido, ignorar que o projeto de permanência do imperialismo ocidental, projeto liderado pelos imperialismos europeu e norte- americano, inclui estratégias mais vastas e invisíveis, que utilizam a cultura - a Cultura, exprime melhor - e todas as suas ramificações, previamente envenenadas com um curare entorpecedor das culturas do Terceiro Mundo, tolhendo na nascente sua afluência e sua chance de uma ação nativa libertadora.
Assim é que esse Ocidente, tendo tudo a perder, nem vivo no real, nem mais vivo ainda na incorporação de um real total pela incorporação do além-fronteiras do onírico humano,
quer, insiste em se propor como modelo alienador, das culturas oprimidas.
Freud continua sendo para o Ocidente culto uma ferida aberta no seu inconsciente, perigosa, e que o Ocidente precisa cicatrizar, esquecer, e a conversão de suas descobertas em estratégias terapêuticas é a mais explícita constatação da manifestação do medo ocidental diante do imaginário.
Será compreendendo que, do outro lado do Atlântico e mais acima dos Trópicos, se encena uma farsa, essa, que regiões de fome e de visões como a Amazônia terão direito, um dia, fatalmente, a um solo próprio e à convivência com suas raízes.
O real está em toda parte, sim, mas sob o domínio do medo ele se transforma em fantasia e fuga ao real.
Só a fábula insurrecta cravada na vida resgatará estética e historicamente a Amazônia dessa miragem: o padrão colonizador imposto a ela.
E, também, da falsa existência que tem sido a nossa até então.
Mas onde está esse subsolo real, o autêntico chão que servirá de base a essa independência histórica e estética, assim exigida com ênfase?
Enquanto ignorarmos isso, esse solo fértil, nem ênfase nem Cultura nos levarão um passo adiante.
E é inevitável que, para saber, será preciso um sacrifício cultural: o sacrifício dessa cultura a que nos habituaram e nos habituamos, será preciso romper tabus, negar-se a velhos cultos.
Quantos de nós se dispõem a tanto?
Há tribos na Amazônia que afirmam:
– A vida é uma ilusão, só os sonhos têm realidade.
Não.
Não se trata de mais uma alienação, mera crença.
Antes, é preciso ver nisso a presença de uma consciência que já viu.
E viu o quê?
É simples: ao tomar o real expresso como o Real, o homem se amesquinha e trai seu projeto de ser inerente: ao suspeitar desse real manifesto em torno de nós, todas as possibilidades de modificá-lo se escancaram. Esse real à nossa volta é, na Amazônia, socialmente, a transplantação da realidade forjada pela cultura do dominador, herança a que nos forçam.
Alguém já disse: - Do fundo de uma prisão, um homem pode fechar os olhos e destruir o mundo. 
É disso, enfim, que se trata. Desse poder. E nós o temos, mas ele dorme entorpecido o nosso sonho de região sem voz, sem identidade, sem alma – porque fomos desalmados pelo invasor.
Ante a constatação inevitável da nossa carência material em resistir a esse colonizador com armas idênticas às dele, porque somos, irmãos, muito pobres, e ante a constatação de que isso seria repetir seus erros e reafirmá-los como valor – quando o nosso projeto é uma reinvenção cultural, uma revalorização da vida – ante essas constatações, e a par de um esforço de independência política e econômica, não temos o direito de negar-nos a nossa arma mais eficaz, imediatamente: o Imaginário, esse poder de que os nossos dominadores seculares, exaustos de sonhar, vêm abrindo mão.
A Amazônia é uma irrealidade, então? Uma utopia? Um fantasma geográfico habitado por fantasmas humanos? É?
Também. Da perspectiva da nossa opressão, isto é trágico; mas da perspectiva da nossa realidade, aí está o começo da nossa liberdade. E não apenas em relação ao colonizador, mas também em relação à própria vida, para nós, potencialmente, um dado lúdico.
E no entanto, aqui se morre, se nasce em ondas, há a fome em estado crônico, homens doentes nos olham nos olhos às vezes com paixão, outras vezes com ódio. Tudo é igual à vida como ela é, vista por fora.
Juntamente com a mobilização de uma operação política, então, é precioso pôr em movimento também uma operação mágica.
Esta: para além do real que me é dado pelo mundo, e, sobretudo, se esse real está deformado pelas marcas de uma dominação alheia a mim, resta-me o recurso de um jogo.
E nesse jogo descubro e me repito, até o último alento:
– A História, a minha história, só terá realidade quando eu me apossar dela pelo meu imaginário de homem e região.
Foi isso o que o colonizador esqueceu, e por isso ele fez de sua história uma História lenta, mas fatalmente, contra a sua própria vida.
Tudo isso vemos, e não vemos, não temos visto, como um espetáculo exposto à nossa consciência: o drama de um naufrágio.
O naufrágio do modelo da civilização ocidental.
Repetiremos sua encenação?
Nesta geografia, não só os rios, mas também as idéias, os desejos, os projetos de vir a ser, tramam labirintos.
Nada a conter. Não nos peçam a coerência e o linear.
A região é barroca. Barroca, aberta e canibal: um dia caberá fazer esta, a última afirmação, com mais propriedade.
Se, como no zen – citação de canibalismo cultural, desde já – me dizem que o corvo da História é negro, me cabe amazonicamente libertar-me na proposição de um outro corvo, mesmo que isso seja aparentemente uma loucura,
o absurdo,
e dizer: - O corvo não é negro.
Aí começam as chances do meu corvo não ser negro. O corvo da História, o meu corvo de ser.
Minha revolução se faz de inversões que me libertam do dado, do imposto, do plausível. Não sou, não quero ser plausível, grita essa região que também já viu, mas esqueceu, foi forçada a esquecer.
Fincado no coração de suas dialéticas racionalistas, o Ocidente, que preferiu eleger para sua tradição a Grécia pós-pré-socráticos, a Grécia lógica, ignora esse jogo.
- Estamos na ilusão, também diria um Heráclito mura.
E essa herança libertária de um filósofo jônico alógico – é preciso exercitar sempre o canibal cultural que preciso ser, diz a região – recusada pelo medo ocidental, nos serve, porque com ela, também, aprendemos a negar a realidade da fatalidade histórica de subnutridos que o Ocidente e sua dominação nos impõem.
Acima foi dito: A minha História amazônica só terá realidade quando o meu imaginário amazônico se apossar dela. 
O meu imaginário de homem e região.
O que significa isso?
O que seriam homem e região em coito cultural, sendo juntos?
Temos as manifestações de uma arte popular entre nós. Frequentemente folclorizada – alienação interna da região, alimentada pelo colonizador, frequentador de um circo pacífico que ele aplaude para que se mantenha assim – no entanto, creio, é daí que virão as nossas mais decisivas oportunidades de escapar aos rigores e ao vício de uma estética imposta a nós.
Os nossos criadores cultos, repetindo um padrão do Ocidente colonizador, têm se apropriado dessa arte popular para apresentá-la sob a forma de um regionalismo inexpressivo, superficial.
É preciso denunciar essa operação, e insistir em criar meios para que essa arte se expresse por si, para que ela não seja expropriada.
A outra alternativa, a de que homens de cultura busquem a cultura popular e a manifestem em sua própria arte, só pode ser um dado revolucionário quando vier sob essa forma, conforme foi declarada por Glauber Rocha na televisão: - Sou um bárbaro e as minhas raízes são as culturas populares do Terceiro Mundo. 
Aqui, procuro um nome numa região similarmente deprimida e asfixiada como a Amazônia. Um nome exemplar. E uma região real e inventada igualmente exemplar.
Falo do Sertão de João Guimarães Rosa.
Não apenas como literatura, mas como espelho válido para todas as nossas linguagens: plásticas, sonoras ou aquelas do silêncio da nossa perplexidade regional, amazônica.
Como nos expressarmos com essa retaguarda de região que somos soterradamente,
com essa retaguarda de oralidades, de lendas, de fábulas que historicamente têm melhor nos expressado como região e como sonho de região, como seres humilhados economicamente, politicamente, esteticamente, mas também como seres luminosos, de violenta riqueza vital?
Em sua outra geografia, como nenhum outro, Guimarães Rosa soube fazer o encontro revelador do seu destino individual com o destino da sua região, e, mais ainda, soube transformar esta região numa metáfora de toda a vida. Nele, em todos os seus livros-salmos, livros-santos, livros- rituais de iniciação na existência, falam mitologias pessoais. E falam também as mitologias da sua região. Nele, Riobaldo é um homem e é os homens, qualquer um de nós e todos nós, e é também Guimarães Rosa. Nesse Guimarães Rosa, o Sertão é um sertão e é mais do que aquela região lá, geograficamente fixada num ponto qualquer da costa do planeta.
Esse tomar-se como indivíduo e ir mais além, para representar a comédia comovente do homem na vida, a comédia comum a todos os homens, homem tornando-se homens para até mesmo expressar melhor, de volta à unidade, a condição humana, o real em cada um de nós, e também esse tomar uma região para expressá-la como uma região específica e ir mais adiante, para fazer essa região valer como uma alegoria do real inteiro, como tem sido vivido da China à África, na Idade Média, hoje ou durante os primeiros clarões da invenção do fogo, essa operação, enfim, de mesclar destino individual e destino coletivo, região e mundo, realidade e imaginário, em demanda do real total, nós não a realizaremos apropriando- nos regionalisticamente da Amazônia. E nem entregando-nos ao modelo de realidade imposto a ferro pelo colonizador.
Será, antes, entregando-nos embriagadamente à nossa condição de homens,
digo: de inventores de uma realidade mais vasta,
será falando conforme a loucura que nos seduziu, como queria um insurrecto europeu que lutou contra a Razão do imperialismo, André Breton,
e será, sobretudo, dando-se generosamente à vida, que nós a realizaremos.
Matar o olho culto herdado das tradições da opressão ocidental sobre nós.
Abrir nesta noite regional um outro olho, nativo.
Essas são as práticas urgentes. De uma perspectiva menos elementar, essa é a nossa fome mais urgente.
Contra o colonizador, nacional e estrangeiro, mas sem a miséria da xenofobia rancorosa,
e insistindo nos valores da insolência e da transgressão.
Nosso nascimento como região depende de uma morte? Sim. Da nossa morte como miragem de região.
E, por isso, e para isso,
então,
temos: Posição: contra o regionalismo e ao mesmo tempo por uma revolução de região, só o mito e o delírio poderão alguma coisa. 
E todos os sentidos advertidos contra os engodos de uma História feita contra nós, por dominadores contra dominados.
Para realizarmos essa operação, precisamos aprender a ouvir as falas do inconsciente falante geral, que é de toda a região e de ninguém em particular – abaixo o emblema fixado contra a porta do imaginário amazônico, aquele que diz: "Propriedade Privada".
Nesse imaginário, é esta região na verdade quem fala, e, através dela, falaremos todos nós.
Bastará deixar que ele nos diga algo. E escutar. Com muita humildade. Muita radical exasperação também. E sonhando bastante os nossos sonhos, a todo instante. E deixando que esses sonhos, os indivi- duais, se misturem com os sonhos da região. Porque, no fundo, só uma coisa sonha e nos sonha: a Vida.
É preciso dar-se, deliberadamente, a ela.
E é preciso insistir:
Nossa História só terá realidade quando o nosso imaginário a refizer, a nosso favor. 

Vicente Franz Cecim 
Belém, Amazônia, Brasil, Março/1983



ZÉ DA VELHA & SILVÉRIO PONTES - SÓ GAFIEIRA! - 1996

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