FLAGRADOS EM DELITO CONTRA A NOITE/MANIFESTO CURAU


O menino ouvia.

- O medo só veio para aqueles que tinham as suas velhas razões para ter medo, e esses passaram a ter medo então do Curau. Eles têm medo de tudo, dizia Jacinto. O menino ouvia.
Quando a ave veio, aquele medo andava pelas ruas com passos que nunca levarão a uma terra sagrada, menino, dizia Jacinto.
E o menino ouvia.

Os jardins e a noite, 1981/ Terceiro livro visível de Andara

Vítimas de uma sociedade violentamente gerada pelos mais evidentes padrões de colonização, nossas chances de mudá-la começam na visualização da face oculta de quem nos fez isso.
Este é um esforço que precisa voltar bem atrás, e que deverá se espalhar, interrogativamente, em várias direções, para obter êxito.
Historicamente, a História vista com um outro olho, não essa de a prioris infalíveis, mas uma de navegações frequentemente sem leme e em rumo incerto, historicamente, a falência do Ocidente culto instituído, aristotélico e cartesiano, pragmático enfim, tem sido uma crença estúpida, contagiosa e exportada para os quatro cantos magros do mundo, num dos quais nos incluímos, embora devamos estar solidariamente em todos eles: uma crença que afirma que só os dias despertos existem, sendo todo o resto fantasma, isto é: a parte dos sonhos.
Aí se instala o reduto central da opressão, desse Ocidente auto- suficiente e, em decorrência, rancoroso, reduto que as nossas confrontações libertárias com o colonialismo devem atacar cada vez mais.
As fábulas do Ocidente culto são, assim, quando existem, frequentemente documentos de um terror.
O terror de permitir que os sonhos humanos penetrem no real para fecundá-lo de desejos nos limites do impossível, seduzindo toda sensatez domada, estabelecida, libertando o real da racionalidade maníaca. Essa senhora respeitável e, no entanto, infame.

 (1) Mas nós, aqui, entre peixes, sonhos e homens, nesta Amazônia em transe permanente, sabemos, ou deveríamos saber, que é preciso tocar o coração de Aquiles do real, ali onde ele é sensível e impaciente espera de um acontecimento total que o transfigure.
Onde se oculta, e como se dissimula, o medo ocidental?
Sua recusa sistemática da dimensão imaginária humana?
Afinal, e claramente, um mecanismo de civilização em processo de autodefesa tão suicida como criminoso, como qualquer outro verificável em individualidades retorcidas pelo esgotamento de uma existência sem revitalizações permanentes?
Marx dizia que, na História, os acontecimentos se repetem como farsas. O Ocidente culto é a repetição de uma repetição, a farsa de uma farsa.
Esse medo, vulnerável a um olhar sem véus, revela-se: trata-se, quando observado sem reservas nem admiração inocente, de uma engrenagem que, atualmente, e cada vez mais, de repetição em repetição histórica, gira ao contrário: se antes permitiu ilusões reconfortantes, hoje, ela despedaça o próprio ocidental – e faz dele sua vítima mais imediata, não esqueçamos isso – carente como ser dado ao mundo social – apesar de uma civilização de bem-estar material – e como projeto de ser – nunca totalmente alienável – na destinação secreta que o põe, no ritual das ontologias indiferentes às deformações da História, e apesar das consolações religiosas do Ocidente, desabrigado num cemitério de ossadas morais, estéticas, políticas – estas, também um fêmur roído até a fronteira das cerimônias sociais já sem sentido.
O medo do Ocidente culto é o medo do Ocidente às revoluções. De qualquer espécie. Poéticas ou políticas, ou à aliança dessas duas formas de luta.
O medo do Ocidente às fábulas do imaginário rebelde é a mais evidente declaração de desprezo desse Ocidente pela realidade.
Porque, na verdade, esse Ocidente nega o real, sob o álibi de recusar o sonho em nome de uma realidade que, de fato, é vazia e inexistente, porque mero artifício engenhoso engendrador de uma forma de dominação que se quer estável e permanente, certeza e reafirmação da manutenção perpétua de um poder.
O medo ocidental culto é o medo dos imperialismos da Razão, e sua base econômica e totemicamente moral, às possibilidades históricas e estéticas da África, da Ásia, do Oriente Médio e da América Latina.
Também não temos o direito de esquecer que é com esse medo que as autoridades desse Ocidente culto submetem o indivíduo ocidental anônimo: latente aliado do Terceiro Mundo para uma insurreição em escala planetária.
Esse medo é o manifesto temor, de impulsões assassinas – os massacres do imperialismo estão em toda parte, inclusive na expansão de um novo imperialismo europeu de esquerda – de um organismo arcaico ante a emergência de novas vitalidades sobre o planeta.
O equívoco das lutas antiimperialistas circunscritas à confrontação política e econômica é, tem sido, ignorar que o projeto de permanência do imperialismo ocidental, projeto liderado pelos imperialismos europeu e norte- americano, inclui estratégias mais vastas e invisíveis, que utilizam a cultura - a Cultura, exprime melhor - e todas as suas ramificações, previamente envenenadas com um curare entorpecedor das culturas do Terceiro Mundo, tolhendo na nascente sua afluência e sua chance de uma ação nativa libertadora.
Assim é que esse Ocidente, tendo tudo a perder, nem vivo no real, nem mais vivo ainda na incorporação de um real total pela incorporação do além-fronteiras do onírico humano,
quer, insiste em se propor como modelo alienador, das culturas oprimidas.
Freud continua sendo para o Ocidente culto uma ferida aberta no seu inconsciente, perigosa, e que o Ocidente precisa cicatrizar, esquecer, e a conversão de suas descobertas em estratégias terapêuticas é a mais explícita constatação da manifestação do medo ocidental diante do imaginário.
Será compreendendo que, do outro lado do Atlântico e mais acima dos Trópicos, se encena uma farsa, essa, que regiões de fome e de visões como a Amazônia terão direito, um dia, fatalmente, a um solo próprio e à convivência com suas raízes.
O real está em toda parte, sim, mas sob o domínio do medo ele se transforma em fantasia e fuga ao real.
Só a fábula insurrecta cravada na vida resgatará estética e historicamente a Amazônia dessa miragem: o padrão colonizador imposto a ela.
E, também, da falsa existência que tem sido a nossa até então.
Mas onde está esse subsolo real, o autêntico chão que servirá de base a essa independência histórica e estética, assim exigida com ênfase?
Enquanto ignorarmos isso, esse solo fértil, nem ênfase nem Cultura nos levarão um passo adiante.
E é inevitável que, para saber, será preciso um sacrifício cultural: o sacrifício dessa cultura a que nos habituaram e nos habituamos, será preciso romper tabus, negar-se a velhos cultos.
Quantos de nós se dispõem a tanto?
Há tribos na Amazônia que afirmam:
– A vida é uma ilusão, só os sonhos têm realidade.
Não.
Não se trata de mais uma alienação, mera crença.
Antes, é preciso ver nisso a presença de uma consciência que já viu.
E viu o quê?
É simples: ao tomar o real expresso como o Real, o homem se amesquinha e trai seu projeto de ser inerente: ao suspeitar desse real manifesto em torno de nós, todas as possibilidades de modificá-lo se escancaram. Esse real à nossa volta é, na Amazônia, socialmente, a transplantação da realidade forjada pela cultura do dominador, herança a que nos forçam.
Alguém já disse: - Do fundo de uma prisão, um homem pode fechar os olhos e destruir o mundo. 
É disso, enfim, que se trata. Desse poder. E nós o temos, mas ele dorme entorpecido o nosso sonho de região sem voz, sem identidade, sem alma – porque fomos desalmados pelo invasor.
Ante a constatação inevitável da nossa carência material em resistir a esse colonizador com armas idênticas às dele, porque somos, irmãos, muito pobres, e ante a constatação de que isso seria repetir seus erros e reafirmá-los como valor – quando o nosso projeto é uma reinvenção cultural, uma revalorização da vida – ante essas constatações, e a par de um esforço de independência política e econômica, não temos o direito de negar-nos a nossa arma mais eficaz, imediatamente: o Imaginário, esse poder de que os nossos dominadores seculares, exaustos de sonhar, vêm abrindo mão.
A Amazônia é uma irrealidade, então? Uma utopia? Um fantasma geográfico habitado por fantasmas humanos? É?
Também. Da perspectiva da nossa opressão, isto é trágico; mas da perspectiva da nossa realidade, aí está o começo da nossa liberdade. E não apenas em relação ao colonizador, mas também em relação à própria vida, para nós, potencialmente, um dado lúdico.
E no entanto, aqui se morre, se nasce em ondas, há a fome em estado crônico, homens doentes nos olham nos olhos às vezes com paixão, outras vezes com ódio. Tudo é igual à vida como ela é, vista por fora.
Juntamente com a mobilização de uma operação política, então, é precioso pôr em movimento também uma operação mágica.
Esta: para além do real que me é dado pelo mundo, e, sobretudo, se esse real está deformado pelas marcas de uma dominação alheia a mim, resta-me o recurso de um jogo.
E nesse jogo descubro e me repito, até o último alento:
– A História, a minha história, só terá realidade quando eu me apossar dela pelo meu imaginário de homem e região.
Foi isso o que o colonizador esqueceu, e por isso ele fez de sua história uma História lenta, mas fatalmente, contra a sua própria vida.
Tudo isso vemos, e não vemos, não temos visto, como um espetáculo exposto à nossa consciência: o drama de um naufrágio.
O naufrágio do modelo da civilização ocidental.
Repetiremos sua encenação?
Nesta geografia, não só os rios, mas também as idéias, os desejos, os projetos de vir a ser, tramam labirintos.
Nada a conter. Não nos peçam a coerência e o linear.
A região é barroca. Barroca, aberta e canibal: um dia caberá fazer esta, a última afirmação, com mais propriedade.
Se, como no zen – citação de canibalismo cultural, desde já – me dizem que o corvo da História é negro, me cabe amazonicamente libertar-me na proposição de um outro corvo, mesmo que isso seja aparentemente uma loucura,
o absurdo,
e dizer: - O corvo não é negro.
Aí começam as chances do meu corvo não ser negro. O corvo da História, o meu corvo de ser.
Minha revolução se faz de inversões que me libertam do dado, do imposto, do plausível. Não sou, não quero ser plausível, grita essa região que também já viu, mas esqueceu, foi forçada a esquecer.
Fincado no coração de suas dialéticas racionalistas, o Ocidente, que preferiu eleger para sua tradição a Grécia pós-pré-socráticos, a Grécia lógica, ignora esse jogo.
- Estamos na ilusão, também diria um Heráclito mura.
E essa herança libertária de um filósofo jônico alógico – é preciso exercitar sempre o canibal cultural que preciso ser, diz a região – recusada pelo medo ocidental, nos serve, porque com ela, também, aprendemos a negar a realidade da fatalidade histórica de subnutridos que o Ocidente e sua dominação nos impõem.
Acima foi dito: A minha História amazônica só terá realidade quando o meu imaginário amazônico se apossar dela. 
O meu imaginário de homem e região.
O que significa isso?
O que seriam homem e região em coito cultural, sendo juntos?
Temos as manifestações de uma arte popular entre nós. Frequentemente folclorizada – alienação interna da região, alimentada pelo colonizador, frequentador de um circo pacífico que ele aplaude para que se mantenha assim – no entanto, creio, é daí que virão as nossas mais decisivas oportunidades de escapar aos rigores e ao vício de uma estética imposta a nós.
Os nossos criadores cultos, repetindo um padrão do Ocidente colonizador, têm se apropriado dessa arte popular para apresentá-la sob a forma de um regionalismo inexpressivo, superficial.
É preciso denunciar essa operação, e insistir em criar meios para que essa arte se expresse por si, para que ela não seja expropriada.
A outra alternativa, a de que homens de cultura busquem a cultura popular e a manifestem em sua própria arte, só pode ser um dado revolucionário quando vier sob essa forma, conforme foi declarada por Glauber Rocha na televisão: - Sou um bárbaro e as minhas raízes são as culturas populares do Terceiro Mundo. 
Aqui, procuro um nome numa região similarmente deprimida e asfixiada como a Amazônia. Um nome exemplar. E uma região real e inventada igualmente exemplar.
Falo do Sertão de João Guimarães Rosa.
Não apenas como literatura, mas como espelho válido para todas as nossas linguagens: plásticas, sonoras ou aquelas do silêncio da nossa perplexidade regional, amazônica.
Como nos expressarmos com essa retaguarda de região que somos soterradamente,
com essa retaguarda de oralidades, de lendas, de fábulas que historicamente têm melhor nos expressado como região e como sonho de região, como seres humilhados economicamente, politicamente, esteticamente, mas também como seres luminosos, de violenta riqueza vital?
Em sua outra geografia, como nenhum outro, Guimarães Rosa soube fazer o encontro revelador do seu destino individual com o destino da sua região, e, mais ainda, soube transformar esta região numa metáfora de toda a vida. Nele, em todos os seus livros-salmos, livros-santos, livros- rituais de iniciação na existência, falam mitologias pessoais. E falam também as mitologias da sua região. Nele, Riobaldo é um homem e é os homens, qualquer um de nós e todos nós, e é também Guimarães Rosa. Nesse Guimarães Rosa, o Sertão é um sertão e é mais do que aquela região lá, geograficamente fixada num ponto qualquer da costa do planeta.
Esse tomar-se como indivíduo e ir mais além, para representar a comédia comovente do homem na vida, a comédia comum a todos os homens, homem tornando-se homens para até mesmo expressar melhor, de volta à unidade, a condição humana, o real em cada um de nós, e também esse tomar uma região para expressá-la como uma região específica e ir mais adiante, para fazer essa região valer como uma alegoria do real inteiro, como tem sido vivido da China à África, na Idade Média, hoje ou durante os primeiros clarões da invenção do fogo, essa operação, enfim, de mesclar destino individual e destino coletivo, região e mundo, realidade e imaginário, em demanda do real total, nós não a realizaremos apropriando- nos regionalisticamente da Amazônia. E nem entregando-nos ao modelo de realidade imposto a ferro pelo colonizador.
Será, antes, entregando-nos embriagadamente à nossa condição de homens,
digo: de inventores de uma realidade mais vasta,
será falando conforme a loucura que nos seduziu, como queria um insurrecto europeu que lutou contra a Razão do imperialismo, André Breton,
e será, sobretudo, dando-se generosamente à vida, que nós a realizaremos.
Matar o olho culto herdado das tradições da opressão ocidental sobre nós.
Abrir nesta noite regional um outro olho, nativo.
Essas são as práticas urgentes. De uma perspectiva menos elementar, essa é a nossa fome mais urgente.
Contra o colonizador, nacional e estrangeiro, mas sem a miséria da xenofobia rancorosa,
e insistindo nos valores da insolência e da transgressão.
Nosso nascimento como região depende de uma morte? Sim. Da nossa morte como miragem de região.
E, por isso, e para isso,
então,
temos: Posição: contra o regionalismo e ao mesmo tempo por uma revolução de região, só o mito e o delírio poderão alguma coisa. 
E todos os sentidos advertidos contra os engodos de uma História feita contra nós, por dominadores contra dominados.
Para realizarmos essa operação, precisamos aprender a ouvir as falas do inconsciente falante geral, que é de toda a região e de ninguém em particular – abaixo o emblema fixado contra a porta do imaginário amazônico, aquele que diz: "Propriedade Privada".
Nesse imaginário, é esta região na verdade quem fala, e, através dela, falaremos todos nós.
Bastará deixar que ele nos diga algo. E escutar. Com muita humildade. Muita radical exasperação também. E sonhando bastante os nossos sonhos, a todo instante. E deixando que esses sonhos, os indivi- duais, se misturem com os sonhos da região. Porque, no fundo, só uma coisa sonha e nos sonha: a Vida.
É preciso dar-se, deliberadamente, a ela.
E é preciso insistir:
Nossa História só terá realidade quando o nosso imaginário a refizer, a nosso favor. 

Vicente Franz Cecim 
Belém, Amazônia, Brasil, Março/1983



ZÉ DA VELHA & SILVÉRIO PONTES - SÓ GAFIEIRA! - 1996

VALÊNCIO XAVIER - O MEZ DA GRIPPE E OUTROS LIVROS




 

O QUE PODE A ARTE NUM MUNDO FASCISTA


vivemos numa ferida aberta.
somos os pequenos vermes de deus.
vivemos em guetos que deveriam ser comunidades,
campos de extermínio do corpo e da consciência
que deveriam ser hospitais e escolas.
vivemos em bunkers
que deveriam ser casas, encaixotados antes de morrer
ou admirando gramados amplos com nossas visões estreitas.

a guernica de picasso foi ampliada,
escapou da tela, ganhou o mundo.
moramos dentro de guernica,
e o bombardeio não para.
touros gritam, cavalos enlouquecem, vulcões acordam,
corpos são despedaçados, prédios queimam,
pássaros morrem,
o tempo todo mulheres choram sobre filhos mortos.

o tom geral é cinza,
a noite impera,
violenta.

há sempre um sujeito
que entra pela porta com uma lâmpada na mão
e ilumina a cena.
o que ele segura firme em sua mão é a arte.
eis o papel da luz: iluminar.
deixar ver, não ocultar o monstro.
e o monstro somos nós e nossos nós.

falamos de nazismos e de fascismos
como ficções doutro tempo
só pra esconder
o óbvio de que estamos dentro dele.

nós fizemos e fazemos todo dia esses fascismos.
levantamos muros contra os outros,
fingimos não ver os muros que levantam contra nós.
fingimos não ouvir o carregamento de pedras chegando.
fingimos não ouvir os pedreiros trabalhando, gritando,
e todos os ruídos que vêm de fora.
fingimos, fingimos: não somos poetas.

usamos no braço direito uma estrela,
no esquerdo uma suástica.
e não sabemos.


ferimos mulheres crianças negros índios
cães surdos cegos velhos gays
lésbicas fanhos albinos
e de vez em quando alguém com um sotaque esquisito.

ferimos qualquer signo que nos estranhe,
qualquer signo áspero
que não seja música aos nossos ouvidos.

ferimos o passado e o presente,
ameaçamos o futuro a cada novo dia.

ferimos a possibilidade da liberdade alheia
com nosso direito falso,
nossa falsa filosofia e a pirotecnia falsa
do que deveria ser literatura, cinema, poesia, música.

covardemente maquiamos o monstro,
escondemos o horror, fingimos não haver guernica.

nosso medo granítico não deixa a luz passar.
mas lá está o sujeito com a luz na mão,
ele entra pela porta sem pedir licença,
sem pedir licença ilumina o inferno.

eis a função da luz: revelar. re-velar.
iluminar de novo e de novo, fazer re-ver.
para isso, para nada.
porque mais vale o inútil do fazer
do que o inútil do não-fazer.

arte como instinto puro.
casamento pleno do sublime com o grotesco.
sem cartilhas ou regras.
sem travas, sem papas, sem línguas.

a arte não possui função social.
a função da arte é essencial.
é ser o que só ela pode ser,
a última trincheira.
comunicação entre essências,
comunicação duma nova experiência.

a arte sobrevive à mudança de políticas,
mudanças linguísticas, ideológicas.
quando todas as opiniões passaram
ela permanece.
quando os sonhos absurdos e ridículos do artista já morreram
o que o atravessou permanece vivo.

os poemas nas cavernas.
a capela profana de michelangelo.
os fractais de picasso.
os noturnos iluminados de chopin.
a flauta carbônica de maiakóvski.
o ronco baixo de gregor samsa.
a jangada viva dos mortos de alberto lins caldas.
a terra desolada.
yorick na mão de hamlet.

tudo extremamente humano e revelador e necessário.
consciência trazida à tona,
revelação duma experiência única.

re-ver. re-ter. re-ler.

a função da arte não é social, é essencial.
não comunicar ideologias do momento.
não repetir o senso comum da pobre mídia rica.
não reduplicar memes mentiras memórias.
não assoviar enquanto dilaceram corpos na esquina.
não apagar a chama antes de entrar na sala.
não ajoelhar e ruminar a cantilena junto com a manada.
não acreditar no sentido do cardume.
não concordar com o cardume.
não acreditar que exista o cardume.
não podemos nos dar o luxo de pararmos de criar.
não podemos nos dar o luxo de não iluminar o inferno.

o sincronismo não nos dá esse bônus.
o monocromatismo do cardume é fascista.
o monocromatismo do cardume
é o que desejam os assassinos de rimbaud e de van gogh.
o monocromatismo do cardume é menos desejável que a morte.
deixar ver é a função da arte.

ensaiar um ensaio sobre a cegueira.
estudar a anatomia da máquina tribal.
olhar para trás enquanto se caminha
e ver a paisagem se desfazendo sem o nosso olhar.

somos máquinas de significação.
mas o que significamos
deve ter o selo da indignação.
não perder o tom da indignação, o dom da indignação.
não se perder na pirotecnia e nos conchavos do cardume.
não se perder
nas políticas misticismos modismos
e outras quinquilharias invasoras.

a função da arte é essencial.
ressignificar.
dar ao outro a possibilidade de ver.
permitir ver.
inventar linguagens.
fazer poesia depois de auschwitz.
a poesia só é possível depois de auschwitz.
fazer poesia porque auschwitz.

não repetir, não submeter ou submeter-se,
não ruminar a ladainha, não dizer amém.
inventar linguagens,
plantar sementes de linguagem,
inventar línguas.
iluminar o inferno,
o grotesco, o injusto, o totalitário,
o monocromatismo do cardume.

tocar enquanto o prédio desaba.
tocar enquanto afunda o barco.
todo barco afunda.
todo prédio desaba.
tocar enquanto há dedos.
iluminar enquanto há olhos.

não perder a capacidade de se indignar
e ver as dilacerações do mundo.
para isso, para nada.
porque sim.
porque é belo
e é grotesco.

porque guernica cresceu e devorou o mundo.
porque talvez o mundo sempre tenha sido guernica.
porque talvez o mundo ainda não tenha sido, nascido, aflorado.

o artista com o fogo roubado dos deuses.
o artista com a loucura necessária.
o artista com a chama
já lhe tocando os dedos os olhos a língua.
o artista como aquele que revela a cena.
não o maquiador do monstro.
não o camareiro dos idiotas de plantão.
não o subalterno lambedor de botas.
não o funcionário da burrice prepotente.
não o afiador de facas do torturador.
não o estilista do capeta.
não o tocador de realejo da praça de guerra.
não a manicure do carrasco.
não o advogado da perfídia.
não o coçador de costas oficial do filho da puta do momento.

o artista sem momento.
o artista sem patrão e sem limites.
o artista simplesmente
como o sujeito que entra de repente e ilumina a cena e revela a máquina
monstruosa triturando tudo.
porque sim. por que não?

construímos guetos
e muros de medo em volta de guetos.
construímos campos de extermínio do corpo e da consciência
como se não houvesse dor suficiente.
habitamos bunkers e afiamos facas
sonhando com a carne alheia,
admirando gramados amplos com nossas visões estreitas.
vivemos numa ferida aberta.
somos os pequenos vermes de deus.
somos deus – esse pequeno verme.
mas lá vem de novo o sujeito com a luz na mão.
ele entra sem pedir licença
e ilumina a cena.

Carlos Moreira



DUKE ELLINGTON - CONCERT OF SACRED MUSIC - 1965

RÁDIO QUILOMBO INSURGENTE MÓVEL IV


r_quim#4: Letieres Leite, Orquestra Rumpilezz & Opanijé. 

Tudo gravado em 21/09/2012, pouco antes do solstício da primavera, durante show realizado no Auditório Ibirapuera, em São Paulo. Professor Letieres Leite conversa com Marcelo Ariel sobre downloads cósmicos e bombardeios eletromagnéticos, sobre a cabala de Coltrane e suas leituras em família de Helena Blavatsky, somados a excertos e músicas do show, junto com a Orquestra Rumpilezz, que rolou no mesmo dia da entrevista. O grupo Opanijé, também de Salvador, foi o convidado da noite, numa fusão de RAP com Jazz e Música Ancestral única. Ao final a versão de estúdio da música Se Diz, do Opanijé, com participação da Rumpilezz e arranjo de Letieres Leite. O disco sai no final de 2013.

ACERVO RIZOMA.NET


Há bombas a serem colocadas em algum lugar, mas na base da maior parte dos hábitos do pensamento atual, europeu ou não. 

Antonin Artaud 




 O link acima disponibiliza todos os textos publicados pelo Rizoma.net, excepcional site brasileiro que ficou ativo entre 2002 e 2009. Os arquivos em PDF estão divididos de acordo com o menu que havia no site: Afrofuturismo, Anarquitetura, Art & Fato, Câmera-Olho, Conspirologia, Desbunde, E-Spaço, Esquizofonia, Gibi, Hierografia, Intervenção, Lisergia, Mutação, Neuropolítica, Ocultura, Panamérica, Potlach e Recombinação. São aproximadamente 3 mil páginas, com textos de Hakim Bey, Flavio de Carvalho, Antonin Artaud, Glauber Rocha, Raoul Vaneigem, Felix Guattari, Walter Smetak, Aimé Cesaire, Jean Baudrillard, Roberto Piva, William Blake, Timothy Leary, Guy Debord e Giorgio Agamben, dentre muitos outros. 





Você nunca tentou saber como um cérebro está organizado?... O aparelho que o faz pensar? Hein? Mas claro que não! Não lhe interessa nem um pouco!... Precisa convencer-se, sinceramente, de que a desordem é a essência da nossa própria vida! De todo o ser físico e metafísico! É a sua alma... milhões, trilhões de circunvoluções... intrincadas, em profundidade, cinzentas, recortadas, mergulhantes, subjacentes, evasivas... Ilimitadas! Esta é a Harmonia! Toda a natureza! Uma fuga do imponderável e não passa disso... Ponho ordem em meus pensamentos; não substituo essa tarefa por outras, materialistas, negativas, obscenas... É preciso procurar o essencial! Você vai, por causa disso, cair em cima do seu cérebro, corrigi-lo, descascá-lo, mutilá-lo, forçá-lo a obedecer a regras obtusas? À faca geométrica? Refazê-lo, crucificá-lo às limitações da burrice?... Armá-lo em camadas como um bolo de aniversário? Com uma pedra dentro! Hein? Responda. Com toda a sua franqueza. Que tal? Seria bom? Interessante! Iria coroar tudo!... É a grande desordem que importa! Os pensamentos prósperos! Tudo tem seu preço... Depois que passa a oportunidade, acabou-se!... Você vai ficar, infelizmente, firme na sua lixeira da razão para sempre! O míope, o cego, o absurdo, o surdo, o maneta o palerma! É você que vem perturbar a minha desordem com esses seus pensamentos depravados... A Harmonia é a única alegria do mundo, a única liberdade, a única verdade. Em ordem! Merda! Em ordem! Habitue-se à Harmonia e a Harmonia descerá até você! E você achará tudo o que procura há muito tempo nos caminhos do Mundo... E muito mais! Uma emboscada inútil de armários! Uma barricada de folhetos! Uma vasta empreitada humilhante! Uma necrópole de mapas! Não sente a vida pululando, fremindo!? Ponha a mão só um pouquinho, um dedinho que seja... Tudo se agita! Vibra no mesmo instante! Está tudo prestes a se lançar, florescer, resplandecer... Não me acho com direito de dizer-te o que é... Muito menos de reduzir, corrigir, corromper, cortar, separar... Hein!?... Aonde é que eu ia achar esse direito? No infinito, na vida das coisas? Não, não é natural, são manobras infames!... Eu continuo em paz com o universo, deixo-o assim como encontro... Não o retificarei nunca!

Louis-Ferdinand Céline




PLINIO MARCOS EM PROSA E SAMBA - NAS QUEBRADAS DO MUNDARÉU - 1974


Para consolar-me dos remorsos da preguiça, tomo o caminho dos bas-fonds, impaciente por aviltar-me e misturar-me com a ralé. Conheço esses mendigos grandiloquentes, nauseabundos, sarcásticos; mergulhando em sua sujeira, gozo com seu bafo fétido não menos do que com sua verve. Implacáveis com os que triunfam, seu gênio para não fazer nada força a admiração, embora o espetáculo que ofereçam seja o mais triste do mundo: poetas sem talento, prostitutas sem clientes, homens de negócio sem um tostão, apaixonados sem glândulas, o inferno das mulheres que ninguém quer... Eis aqui, finalmente, digo-me, a realização negativa do homem, ei-lo despido, este ser que pretende ter uma ascendência divina, mísero falsificador do absoluto... Devia acabar aí, nesta imagem que se parece consigo, lama na qual jamais nenhum deus pôs a mão, besta que nenhum anjo altera, infinito parido entre grunhidos, alma surgida de um espasmo... Contemplo o surdo desespero dos espermatozoides chegados a seu termo: os rostos fúnebres da espécie. 
Emil Cioran 


CAROLINA MARIA DE JESUS - QUARTO DE DESPEJO - 1961
http://www26.zippyshare.com/v/6427470/file.html

BJÖRK ENCONTRA STOCKHAUSEN



Karlheinz Stockhausen é um dos compositores mais renomados do século 20, uma influente personalidade da vanguarda europeia cujo nome é sinônimo de música experimental. Um cientista e explorador sonoro, ele foi a primeira pessoa a gravar música eletrônica e está entre os primeiros a apresentar uma ao vivo. Stockhausen foi nomeado Professor de Composição na Escola de Música de Colônia em 1970, onde lecionou por sete anos. Em 1990 ganhou um prêmio de Distinção do júri do Prix Ars Electronica. Com mais de 250 obras e mais de 80 discos lançados, a música complexa e desafiadora de Stockhausen tem sido sempre o som do amanhã.

Nascido próximo a Colônia, em 1928, Stockhausen se tornou órfão durante os anos de guerra e teve de lutar para se sustentar e para alcançar uma boa educação. Na escola seu primeiro instrumento foi o piano, que ele continuou estudando na Hochschule für Musik de Colônia. Paralelamente, cursava aulas de musicologia, filologia e filosofia na Universidade de Colônia. Com entusiasmo ele absorveu o trabalho de compositores contemporâneos como Schoenberg, Stravinski e Bartók, mas foi apenas quando tomou contato com a música de Webern e a da nova geração de compositores serialistas de Darmstadt, no verão de 1951, que ele encontrou seu próprio caminho e se propôs a fazer música.

Em 1952 Stockhausen se mudou para Paris para estudar composição. Seus estudos e análises o levaram a uma minuciosa investigação da natureza física dos sons. No estúdio de música concreta da Rádio Francesa, dirigido por Pierre Schaeffer, ele adentrou o micromundo acústico dos sons e resolveu, ao retornar a Colônia, se aperfeiçoar em música eletrônica. No estúdio WDR Stockhausen desafiou a compreensão geral das técnicas de composicão ao gravar osciladores e geradores de tom, literalmente o sinal de teste da estação de rádio, para assim criar padrões sonoros. Stockhausen pertence à primeira geração que ouviu música sem fios. O imediatismo do ajuste do dial o influenciou profundamente. Ele tem escrito peças interpretativas para receptores de ondas-curtas, cultivando métodos elegantes para ilustrar conceitos elaborados. A música intuitiva de ‘Aus den sieben Tagen’ (1968) instrui os performers a:

“viver completamente sozinho por quatro dias
sem comida
e em completo silêncio e sem se movimentar muito
dormir o mínimo necessário
pensar o mínimo possível
após quatro dias, tarde da noite
sem refletir, diretamente
tocar sons isolados
SEM PENSAR no que está tocando
feche seus olhos
apenas ouça”.

Permitir aos performers serem guiados pela intuição era um ato revolucionário. Um decodificador da tecnologia humana, mais um autor de conceitos do que de composições, Stockhausen tem consistentemente experimentado com as formas de percepção dos sons, muito próximo da grandiosidade. Na World Fair EXPO ’70, em Osaka, 20 performers recitaram obras de Stockhausen cinco horas por dia por 180 dias. Num auditório azul metálico decorado com pequenas estrelas do iluminador Otto Pien, visitantes se sentavam em almofadas cor de ocre numa plataforma transparente. Solistas ocupavam as galerias enquanto Stockhausen operava a mesa de som, projetando sons de sete anéis concêntricos e 55 caixas de som em caminhos circulares e espiralizados. Mais de um milhão de ouvintes imergiram na experiência, ouvindo o movimento e as formas das camadas de som.

Ano passado, em Amsterdã, ele amplificou cordas de violinos mixadas com o bater de hélices de helicópteros, cada um deles levando um membro de um quarteto de cordas. Os instrumentos imitavam os rotores, aumentando em intensidade conforme as aeronaves subiam. Os helicópteros viravam e se inclinavam para mudar o ritmo e a velocidade das lâminas da hélice. Dentro, câmeras enviavam imagens ao vivo para a plateia, que assistia à performance em monitores posicionados como um quarteto de cordas na sala de concerto. Altamente compostos, com cada componente como uma parte intrínseca do Quarteto Helicóptero, todos eram dirigidos por Stockhausen do chão.

Na fronteira entre composição e apresentação, Stockhausen estabeleceu uma posição da qual sempre pode aprimorar suas ideias. Quando isso já não mais podia ser expressado de forma convencional, ele ilustrava seus manuscritos com cores, linhas, símbolos, etc. Em sua escrita, Stockhausen constantemente se refere a sua música como proposicões abstratas de uma natureza religiosa. Ele tem sido muito ativo como professor e como performer de suas próprias composições desde que fundou seu Ensembleem 1964. Embora o conservadorismo acadêmico e a crítica pós-moderna tenham conspirado contra ele, Stockhausen calou seus críticos ao comprar os direitos sobre seus trabalhos. A Stockhausen Verlag está gradualmente remasterizando e relançando seu próprio catálogo.

Ao introduzir elementos do acaso, Stockhausen libertou a composição do século 20 da linearidade e aumentou o terreno estabelecido pela música Ocidental. Agregando elementos espirituais ao mainstream da vida artística, ele tem trabalhado entre o intelecto e a intuição, juntando todos os meios disponíveis ao compositor do século 20. O alcance da síntese obtida justifica sua grandiosidade. Stockhausen é o ‘randomiser’ que abriu uma miríade de caminhos musicais a um universo infinito de experiência, vida e pensamento.


STOCKHAUSEN POR BJÖRK

“Eu ia à escola de música desde os 5 anos de idade, e quando tinha 12 ou 13, cheguei à musicologia onde um professor e compositor Islandês me apresentou Stockhausen. Eu me lembro de ser briguenta na escola, a excluída, com uma paixão verdadeira pela música, mas contra essa coisa retrô, normalmente aquela chatice de Beethoven e Bach. Muito disso era essa frustração com a obsessão da escola pelo passado. Quando eu fui apresentada a Stockhausen foi tipo ‘aaah!’. Finalmente alguém estava falando a minha língua. Stockhausen tem dito frases como: “Nós devemos ouvir música ‘velha’ apenas um dia no ano e nos outros 364 dias devemos ouvir música de ‘agora’.  E nós devemos fazê-lo da mesma forma que olhamos álbuns de fotos de quando éramos crianças. Olhar por muitas vezes fotos velhas faz com que elas percam o propósito. Você passa a se preocupar com algo que não importa, e para de se preocupar com o presente. Era assim que ele olhava para todas aquelas pessoas que eram obcecadas por música antiga. Para uma criança nascida na minha geração, que tinha 12 anos àquele tempo, isso era brilhante, pois ao mesmo tempo eu também estava sendo apresentada à música eletrônica de bandas como Kraftwerk e DAF.

Eu penso que quando falamos de música eletrônica ou música atonal, Stockhausen é o melhor. Ele foi a primeira pessoa a fazer música eletrônica, antes mesmo que os sintetizadores tivessem sido inventados. Quero compará-lo a Picasso, pois assim como ele, Stockhausen passou por diversas fases. Há uma enormidade de artistas que construíram suas carreiras dentro de apenas uma das fases de Stockhausen. Ele está sempre um passo adiante: descobre algo que nunca havia sido feito musicalmente antes e, antes mesmo que outras pessoas entendam o que ele criou, ele já parte para a próxima. Como todos os gênios, Stockhausen se mostra obcecado com o casamento entre mistério e ciência, ainda que sejam opostos. Cientistas normais são obcecados por fatos: cientistas geniais são obcecados pelo mistério. Quanto mais Stockhausen descobre com a música, mais ele descobre que não sabe porra nenhuma, que está perdido. Stockhausen me contou sobre a casa que ele mesmo construiu na floresta, e em que morou por 10 anos. Ela é feita de pedaços hexagonais de vidro e não há dois cômodos iguais, são todos irregulares. Ela é toda construída com ângulos reflexivos e muitas entradas de luz. A floresta acaba refletida por dentro de toda a casa. Ele estava me explicando como, após 10 anos, ainda haviam momentos em que ele não sabia onde estava, e ele dizia isso com espanto em seus olhos. Aí eu disse: ‘Isso é brilhante: você pode ser inocente mesmo em sua própria casa’, e ele respondeu: ‘Não apenas inocente, mas também curioso’.
É um piadista!”




BJÖRK ENTREVISTA STOCKHAUSEN

Björk Gudmundsdottir (BG): Parece que sua música eletrônica é mais como a sua verdadeira voz, e suas outras obras são menos pessoais, de alguma forma. Você também sente isso?

Karlheinz Stockhausen (KS): Sim, porque muito do que faço soa como um mundo muito alienígena. Assim, um conceito como ‘pessoal’ passa a ser irrelevante. Isso não é importante, porque é algo que não sabemos, mas eu gosto disso e faço.

(BG): Parece que você coloca suas antenas pra fora, e aquilo é como a sua voz, seu ponto de vista, como vindo do exterior. Ou algo como… (pausa) Eu não consigo explicar.

(KS): Não, eu também não. A coisa mais importante é que isto não é como um mundo pessoal, mas algo que todos nós não sabemos. Nós devemos estudar isso, devemos experimentar isso. Se sentimos algo assim, aí demos sorte.

(BG): Tem certeza que isso não é você?

(KS): Oh, eu sempre me surpreendo comigo, muitas vezes. E quanto mais  descubro algo que eu não tenha experimentado antes, mais entusiasmado  fico. Eu penso que isso é o mais importante.

(BG): Eu tenho esse problema,  fico muito entusiasmada com a música. Aí  entro em pânico pois sinto que não terei tempo pra fazer tudo que quero, isso te perturba?

(KS): Sim e não, porque eu aprendi agora que mesmo meus primeiros trabalhos, feitos há 46 anos atrás, ainda não foram entendidos pela maioria das pessoas. Então é um processo natural você encontrar algo que te surpreenda,  para os outros isso é ainda mais difícil de incorporar em seus seres. Então demoraria às vezes 200 anos para que um  grande grupo de pessoas, ou mesmo de indivíduos, atingirem o mesmo estágio que eu atingi ao ter gasto, vamos dizer, três anos, por oito horas ao dia no estúdio para criar algo. Você precisa de tanto tempo quanto eu precisei apenas para aprender  a ouvir. E nem vamos falar sobre entender o que a música significa. Então é um processo natural que certos músicos façam algo que precisa de muito tempo para ser ouvido por muitos, e isso é muito bom.

(BG): É, mas eu também estou falando sobre a relação entre você e você mesmo, e o tempo que você tem entre seu nascimento e sua morte. Se é  suficiente pra fazer tudo o que você quer.

(KS): Não, você só pode fazer uma parte pequena daquilo que quer fazer. É natural.

(BG): É, talvez eu seja muito impaciente. É muito difícil pra mim…

(KS): 80 ou 90 anos não são nada. Existem muitas obras musicais belíssimas do passado que a maioria das pessoas vivas nunca irá ouvir. Essas obras são extraordinariamente preciosas, cheias de mistério, inteligência e invenção. Estou pensando neste momento em certos trabalhos de Bach, ou até mesmo de compositores anteriores a ele. Existem tantas composições fantásticas, com 500 ou 600 anos , que não são conhecidas pela maioria dos seres humanos. Então vai demorar muito tempo. Há bilhões de coisas preciosas no universo que não temos tempo de conhecer e estudar.

(BG): Você parece tão paciente, como quem tem uma enorme disciplina para aproveitar o tempo. Isso me apavora, eu não aprendi nem como sentar na minha cadeira, é difícil pra mim. Você sempre trabalha oito horas por dia?

(KS): Mais.

(BG): O seu foco é mostrar ou gravar as coisas lá fora? Provar que elas existem, como por razões científicas, ou é mais emocional, para criar uma desculpa para que todos se unam, de forma que talvez alguma coisa aconteça? Como sua música poderia atingir isso?

(KS): São ambos.

(BG): Ambos?

(KS): Claro. Sou como um caçador, tentando encontrar algo, e ao mesmo tempo, bem, esse é o aspecto científico, tentando descobrir. Por outro lado, estou emocionalmente em  alta tensão sempre que chega o momento em que tenho de agir com meus dedos, com minhas mãos e meus ouvidos, em que movo o som, dou-lhe forma. É aí que não posso separar pensamento e ação com meus sentidos: ambos são importantes para mim. Entretanto, o envolvimento total ocorre em ambos os estados: se sou  um pensador, ou um ator; eu estou totalmente envolvido, eu me envolvo.

(BG): Eu costumava viajar com meu microsystem e ter meus bolsos cheios de fitas, e tentava sempre encontrar a música certa. Eu não me preocupava qual música era, desde que ela unisse a todos naquele ambiente. Mas às vezes isso pode ser um truque barato, sabe? Eu me lembro que li certa vez que uma das razões porque você não gosta dos ritmos regulares é por causa da guerra.

(KS): Não, não, isso foi…

(BG): …um mal entendido?

(KS): Hmm, sim. Quando eu danço eu gosto de música regular; sincopada, natural. Ela não deve ser sempre como uma máquina. Mas quando eu componho, eu utilizo ritmos periódicos muito raramente, e apenas num estágio intermediário, porque eu penso que há uma evolução na linguagem musical na Europa que tem levado de ritmos muito simples e periódicos a ritmos cada vez mais irregulares. Então eu tomo cuidado com músicas que enfatizem esse tipo de periodicidade minimalista pois isso externaliza os sentimentos e impulsos mais básicos do ser humano.
Quando eu digo ‘básico’, isso significa o físico. Mas não somos apenas um corpo que anda, que corre, que faz movimentos sexuais, que tem um batimento cardíaco que é, mais ou menos, num corpo sadio, 71 batidas por minuto, ou que tem certos impulsos cerebrais, então nós somos todo um sistema de ritmos periódicos. Mas já dentro do corpo há muitas periodicidades superimpostas, que vão de muito rápidas a muito lentas. Respirar é, algo que ocorre num momento calmo, aproximadamente a cada seis ou sete segundos.
Ali está a periodicidade. E tudo isso junto constrói uma música muito polimétrica no corpo, mas quando eu faço música como arte eu sou parte de toda a evolução, e estou sempre procurando mais e mais realizar trabalhos diferenciados. Na forma também.

(BG): Apenas porque é mais honesto, mais real?

(KS): Sim, mas o que a maioria das pessoas gosta é de uma batida repetitiva, regular, hoje em dia eles fazem isso até na música pop com uma máquina. Creio que se deva fazer um tipo de música que seja um pouco mais… flexível, assim por dizer, um pouco mais irregular.
Irregularidade é um desafio, veja isso. O quão longe podemos ir fazendo música irregular? Podemos ir tão longe quanto um pequeno momento em que tudo se sincroniza, e repentinamente some de novo em diferentes métricas e ritmos. Mas é assim que é a história, de qualquer forma.

(BG): Penso que na música popular de hoje as pessoas estão tentando lidar com o fato de que estão vivendo com todas essas máquinas, e tentando combinar máquinas e humanos e tentando casá-los num matrimônio feliz: tentando ser otimista sobre isso. Eu fui criada por uma mãe que acreditava piamente na natureza e queria que eu vivesse descalça 24 horas por dia e todas essas coisas, então fui criada com esse grande complexo de culpa de carros e arranha céus, e eu fui ensinada a odiá-los, e agora eu penso, tipo, estou no meio. Eu posso ver essa geração, que é dez anos mais nova do que eu, fazendo música, tentando viver com isso. Mas tudo é com aqueles ritmos regulares e aprendendo a amá-los, mas ainda ser humano, ainda ser totalmente corajoso e orgânico.

(KS): Mas ritmos regulares estão em todas as culturas: a base da estrutura. É somente muito mais tarde que eles começaram a criar ritmos mais complicados, então eu penso que não é tão verdade que as máquinas tenham trazido irregularidade.

(BG): É, eu acho que o que me faz mais feliz é o teu otimismo, especialmente sobre o futuro. E eu penso, pra mim, aqui estou falando também sobre minha geração. Nós fomos ensinados que o mundo está descendo ralo abaixo e que todos vamos morrer logo, e encontrar alguém tão aberto como você, com otimismo, é especial. Muitos jovens estão fascinados pelo que você tem feito. Você acha que é por causa desse otimismo?

(KS): Também eu entendo que os trabalhos que tenho composto são um grande material de estudo, para aprendizado e experiência. Em particular, experimentar a singularidade, e isso dá confiança às pessoas, então elas vêem que ainda há muito por fazer.

(BG): E também talvez porque você tem feito tantas coisas que eu penso que muitos jovens devem achar que um por cento disso vale a pena, e podem assim se identificar com o que você tem feito.

(KS): Talvez com trabalhos diferentes, porque eles não podem conhecer todos. Eu tenho 253 trabalhos que podem ser individualmente apresentados, em partituras, e aproximadamente 70 ou 80 discos com trabalhos diferentes em cada um, todos diferentes, então há muito por se descobrir. É como um mundo dentro de outro, e há tantos aspectos diferentes. Provavelmente é disso que eles gostam: todas essas obras são diferentes. Eu não gosto de me repetir.

(BG): Você acha que é nossa função levar tudo aos seus limites, utilizar tudo o que temos, como toda a inteligência e todo o tempo, e tentar de tudo, especialmente se é difícil, ou você acha que é mais uma questão de apenas seguir os próprios instintos, deixando de lado as coisas que não nos excitam?

(KS): Eu estou pensando neste momento nos meus filhos. Tenho seis filhos, eles são bem diferentes. Há dois, em particular, por acaso os mais jovens, que estão imersos em direções tão distintas que dizem respeito a gosto, ou entusiasmo, e há um filho que é trompetista que tentou em certo momento, anos atrás, se tornar um professor espiritual. Ser um professor de Yoga e ajudar pessoas em dificuldade a se animarem e acreditarem num mundo melhor, mas aí eu lhe contei que já há bastantes pregadores, e que focasse no seu trompete. Demorou alguns anos para que ele voltasse a seu trompete, e agora ele parece concentrado e deixa de fora quaisquer outras opções que tenha. Eu poderia ter sido um professor, um arquiteto, um filósofo, um professor que só deus sabe de quê entre tantas faculdades diferentes. Eu poderia ser um jardineiro ou um fazendeiro muito facilmente: fui um agricultor por muito tempo, por um ano e meio de minha vida. Estive também numa fábrica de automóveis por um tempo, e eu gostava daquele trabalho, mas eu entendi tudo ao final dos meus estudos, quando ainda estava  trabalhando em meu doutorado - e como um pianista eu ensaiava por 4 ou 5 horas por dia no piano, sozinho. Eu tocava toda noite num bar pra sobreviver, mas desde que compus a primeira obra que senti soar diferente de tudo que conhecia, tenho focado na composição e tenho perdido quase tudo o que o mundo tem a me oferecer: outras faculdades, outras formas de viver, como você acabou de dizer, excitações de todos os tipos. Eu tenho realmente me concentrado, dia e noite, em um aspecto muito determinado: compor, apresentar e corrigir minhas partituras e publicá-las. E, pra mim, isso tem sido o jeito certo. Eu não posso dar conselhos gerais, pois se o indivíduo não ouve seu chamado interior, ele não realiza nada. Então você tem de ouvir o chamado e não haverá mais questionamento.

(BG): É, é como você pode chegar mais longe.

(KS): Eu não sei. Eu apenas acho que não consigo realizar nada que faça sentido para mim se eu não me concentrar exclusivamente naquela coisa. E assim perco muito do que a vida tem a oferecer.

(BG): E aprende como se sentar em uma cadeira.

(KS): Você sabe que eu também sou regente, não fico apenas sentado numa cadeira. Conduzo orquestras, coros, ensaio muito, e ando por aí arrumando caixas de som com os técnicos, e organizando todos os ensaios, então não é apenas sentar numa cadeira, mas eu te entendi, é como se concentrar naquela única vocação.

Texto originalmente publicado na revista Dazed and Confused (ed.23) por Desmond K. Hill em agosto de 1996.

Tradução de Kleber Nigro & Marcelo Ariel